Rafael Carneiro

Textos

A TERCEIRA IMAGEM

“Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.”

Guimarães Rosa em "A Terceira Margem do Rio"

Em seus deslocamentos diários por Belo Horizonte, Rafael Carneiro caminha atento aos fluxos da cidade. Sempre munido de câmera e filme, há cinco anos - entre um e outro compromisso do exercício da Medicina - ele registra em imagens suas observações das ruas da capital mineira, criando um memorial particular da paisagem urbana. É quando entra em jogo o olhar de um fotógrafo sensível e atento a detalhes que muitas vezes se perdem no caos e na correria-diária-de-cada-um. À concretude desmedida da urbe e suas pressas, ele empresta quietude e mansidão de um tempo interno e assim vai inventariando cenas e cenários de uma cidade que passa despercebida.

Para a elaboração do ensaio “Dois Lados”, Rafael fotografou com câmera analógica, usando os dois lados da película. Mas em tempos de tantos deslumbres tecnológicos, manipulações supérfluas, aplicativos de efeitos mil e filtros mirabolantes vale ressaltar que a técnica aqui não está a serviço – como é muito comum hoje mesmo na fotografia profissional – de um maneirismo estético. Em “Dois Lados” temos um caso em que a escolha da técnica está afinada com o conceito do trabalho, sua proposta e seu resultado.

A fotografia enquanto espécie que equaciona questões de tempo e espaço está presente em cada imagem isolada, onde estão condensados fatos, veracidades, maravilhas e misérias de uma cidade real, aquela que pode ser buscada em mapas com suas coordenadas geográficas, vistas em tempos que podem ser contados em relógios e calendários.

A escolha do momento, o enquadramento, a disposição dos elementos na cena, enfim, questões estéticas inerentes ao exercício da fotografia estão presentes em cada registro. Porém o objeto em si para o qual sua câmera aponta é apenas pretexto para uma busca infinda de significados outros.

Não é só o disparo certeiro do fotógrafo em busca do fato, daquilo que nossa percepção confortavelmente busca e lê como “fotografável”. O trânsito e os transeuntes, a arquitetura e a natureza, enfim, tudo que é inerente à cena urbana está no seu foco de atenção. Mas ao fotografar com os dois lados da película, ele agrega um novo elemento às imagens: o imponderável. Tempos diversos se projetam em espaços fortuitos e então temos tantas outras cidades contidas dentro de uma. Somos envolvidos numa trama de reconhecimento e desconhecimento, que nos aguça outras percepções sobre o habitual.

Nesse jogo de justaposições proposto pelo fotógrafo, camadas de realidade se somam à imprevisibilidade na criação de uma terceira imagem, em que cada espectador é capaz de encontrar-se a partir das suas próprias referências ao mesmo tempo em que o insólito, a interação inusitada entre as imagens de cada lado da película alimenta uma certa inquietude, uma provocação dos sentidos, uma experiência que escapa ao exercício de olhar para um registro fotográfico na busca automática de verossimilhanças.

Em “Dois Lados”, os elementos essenciais da fotografia como registro do factual se juntam ao seu imenso potencial ficcional. O que importa não é o imediatismo da fotografia única, mas aquilo que a imagem final evoca: outros tempos, aqueles que escapam. O não-fato. Aquilo que não se vê. O que corre à revelia. Cada nova composição é uma janela inesgotável pela qual o espectador pode olhar a cidade, mas não só: também pode reinventar, recriar, reelaborar para si próprio o que não aconteceu, o que poderia ter sido, o que não foi.

Érica Rodrigues

Sintaxe Paulista